"No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma."
"Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Se o incitavam a falar exclamava:
- Ai! Que preguiça...
e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau da paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus."
"Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaiamuns diz-que habitando a água-doce por lá. No mocambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e freqüentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacororô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo."
Agora imaginem Macunaíma em um focus group...
Nosso herói tupiniquim aguardava ansiosamente na sala de espera, com a pulga atrás do cocar. O que estava por trás daquela singela porta de madeira com um chamativo número "3"? Não sabendo o que esperar, preferiu não fazer suas costumeiras coisas de sarapantar. Afinal, estava ali por dinheiro e não queria perder seu vintém.
Ao entrar na pequenina sala com uma mesa retangular e um estranho vidro espelhado, lembrou-se das graças das cunhatãs que por muitas vezes espiou pelo reflexo do rio. Deu um leve sorriso maroto e ameaçou se animar, mas como só havia homens ao seu redor findou por se aquietar em sua cadeira.
Alguns minutos depois entrou na sala uma mulher assustadora, e em seus devaneios Macunaíma acreditou se tratar de Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã comedor de gente. E apesar de suas garantias de que todos poderiam falar o que pensavam, Macunaíma se espertou e entrou em estado de alerta para se proteger dos truques desse terrível monstro com calcanhar pra frente.
Assim como foi em seus 6 primeiros anos, sentiu uma preguiça danada de falar. E já que não tinha cabeça da saúva para decepar, se contentou em engolir coxinhas e outras guloseimas que estavam na mesa.
Enquanto isso os outros machos da sala soltavam asneiras apenas para agradar o gigante Piaimã. Macunaíma sentiu uma vontade grande de cuspir em suas caras. Mas se limitou a balançar a cabeça e concordar.
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Escrevi essa paródia do clássico de Mário de Andrade para tentar mostrar o que penso a respeito dos focus groups (e das pessoas que não conseguem fazer nada sem eles).
Ultimamente tenho participado de muitos desses grupos, para diferentes clientes e com diferentes objetivos. E me arrisco a dizer que eles não servem para nada. Minto. Servem para fazermos uma "boquinha" e nos divertirmos um pouco com as pérolas proferidas por aqueles pobres coitados que estão ali atrás de alguns trocados.
Afinal, quem consegue ser verdadeiro em uma sala abafada, ao lado de pessoas desconhecidas e uma moderadora despreparada que não sabe conduzir a conversa e chega a induzir respostas? O que dizer então da cara de macaco de circo dos nossos colegas consumidores quando são avisados de que atrás daquele espelho intimidador estão os responsáveis pelo trabalho, e observam atentamente cada um de seus movimentos?
Será que Macunaíma personificaria o anti-herói brasileiro se a história se passasse em uma sala espelhada de focus group?
Apesar de toda a teoria em torno dos mecanismos de funcionamento das pesquisas qualitativas em grupos focais e suas contribuições para o trabalho estratégico e criativo, minha crença é a seguinte: "Se você não pode peidar, não pode ser você mesmo. Se você peida e não assume, não está sendo você mesmo". Você por acaso já viu alguém peidar durante um focus group e levantar o dedo assumindo a culpa? Acreditem, após tanto refrigerante e fritura as pessoas peidam.
Estou sendo um fanfarrão irresponsável justamente para demonstrar o desprezo que sinto por esse assunto, que na minha opinião é algo tão imbecil e sem sentido quanto isso.
Pesquisas com esse formato deveriam ser banidas da face da terra. Elas tornam a comunicação mais burocrática, tentando transformar em ciência exata aquilo que não é ciência (e nem arte). Elas criam profissionais cada vez mais acomodados e medrosos, que já não conseguem mais tomar decisões por si próprios. Elas destroem uma das principais armas de um planejador, que é a intuição. Elas cerceiam a criatividade e a inovação.
O que falar então dos focus groups conduzidos com o objetivo de testar as soluções criativas de uma campanha?
"Se tudo der errado eu coloco a culpa no resultado da pesquisa, que foi super-favorável à ação", pensam os brilhantes gerentes de marketing.
Eles por acaso acaso acreditariam se eu lhes falasse que o sabor de um suco em pó de morango é o mesmo do suco natural, feito com frutas frescas? Não! Isso porque você nunca vai conseguir reproduzir "em laboratório" o efeito que determinada ação teria "in loco". Por melhor que seja a mancha ou a vídeo-colagem...
Ou você acha que a emoção de uma mulher ao ser pedida em casamento é a mesma quando ela apenas vislumbra a cena?
Akio Morita, um dos fundadores da Sony Corporation, disse:
"We don't ask consumers what they want. They don't know. Instead we apply our brain power to what they need, and will want, and make sure we're there, ready."
Gênio.
Pode parecer loucura um planner criticar uma ferramenta que por muito tempo ajudou a entender consumidores e construir estratégias. Mas será que essa ajuda foi maior que seus prejuízos? Quantas boas idéias já não foram sacrificadas? Quantas estratégias vencedoras não ficaram pelo caminho? Quantos profissionais medíocres conseguiram sobreviver escondidos atrás dos extensos relatórios de pesquisa?
Gostaria de esclarecer que não estou criticando todos os tipos de pesquisa. A Box 1824 e a CO.R estão aí para provar que é possível gerar consumer insights relevantes utilizando formatos e ferramentas que não façam as pessoas se sentirem intimidadas como professores de física em um picadeiro.
Mas optei por ser radical justamente para evidenciar um ponto de vista sem ficar em cima do muro. Afinal, é uma hipocrisia falar de mudanças comportamentais do consumidor, fragmentação das mídias e novas ferramentas de comunicação se ainda levam em consideração o que é "descoberto" com esse arcaico tipo de pesquisa.
Diante desse novo cenário, você acredita ser coerente aceitar respostas vindas de uma sala com 8 homens, CD, 18-24?
Acho que essa é uma discussão pertinente e importante, e por isso seria legal ter a sua participação nos comments. Encaminhem o link desse post para seus amigos planners (e anunciantes) para tentarmos salvar a comunicação das terríveis garras burocráticas dos institutos de pesquisa, também conhecidos como gigantes Piaimãs comedores da criatividade.
Como você viu em minha releitura do clássico da literatura nacional, em nenhum momento Macunaíma disse à moderadora que ele só queria sua Muiraquitã...