sexta-feira, 18 de abril de 2008

Ou todos ou nenhum

Numa tarde qualquer nos anos de 1970, no auditório da Folha de São Paulo, fiquei impressionadíssimo com um homem miúdo e franzino que fazia uma eloqüente, porque apaixonada, explanação das razões, humanitárias todas elas, pelas quais o país deveria promover recursos para a inserção de uma enorme parcela de brasileiros a um nível mínimo, porém digno, de condição de vida e não somente de sobrevivência.

As trevas desse período foram iluminadas e, por mais bruxuleantes que sejam as luzes, vivemos tempos de uma esperança legítima, resgatada com o martírio de toda uma geração, nunca é demais lembrar.

Mas o que esse ato falho de um passado esquerdista tem a ver com o marketing promocional? “Nadatudo”, diriam os tropicalistas em sua novilíngua.

Nada, se tomarmos fantasiosamente nosso setor de atividade como refratário ao momento social do Brasil, tal qual a paz protegida por muros de grades e lanças que tentam deixar a realidade onde mais nos convém: longe.

Tudo, se, mesmo ignorando as tais razões humanitárias, considerarmos cada indivíduo um consumidor potencial e enxergarmos “mercado” onde vemos população. Cínico? Pode até ser, mas é um interessante viés para tocarmos o assunto justiça social pela lógica capitalista, identificando aí uma oportunidade incomensurável de lucro.

A imprensa já estampa como manchete que, finalmente, a classe C está indo ao paraíso. Caraminguás somados, no bolso da base da pirâmide reluzem algo estimado em 50 bilhões de reais/ano com a ascensão de 20 milhões que migraram das classes D e E. É um numerário suficientemente atraente para virar “focus” para qualquer empresa.

O melhor de tudo é que se trata de um mercado zero bala, território aberto para ser conquistado pelo primeiro que entender sua dinâmica.


Mas como nada vem de graça na vida, a passagem para essa terra onde corre o leite e o mel tem lá suas esfinges ameaçando com o “decifra-me ou te devorarei”.

Ao contrário de Édipo, não conheço o segredo que abre a guarda da esfinge, mas suspeito de várias respostas que podem levar os aventureiros para a goela da criatura.

A primeira delas é a tentação de fazer um produto “popular” para ficar ao alcance do poder aquisitivo da classe C. Ao ascender de categoria, o novo consumidor vislumbrará a oportunidade de realizar sua cultura de consumo, que nada tem de popular. Em outras palavras, a classe C agora, com todo o direito, vai querer consumir marca. Nada mais justo. Estamos há décadas vendendo marcas no lugar de produtos, sabendo de longa data que o consumo de bens é apenas o primeiro estágio de civilização. Consumir marcas exige capacidade de sublimar, de abstrair, de fabular o discurso racional. Alguém, de quem não lembro o nome, já disse com muita propriedade que o consumo de supérfluos (sic) é uma conquista de cidadania. Basta ver que, quando a renda aumenta, sobe o consumo de refrigerantes de marca e cai o de tubaínas.

Outra das condutas perigosas é usar os canais de venda próprios dos guetos nos quais a classe C foi encerrada. Como decorrência da cultura de consumo, ao sair da sombra, essa classe vai querer se servir dos canais usados pelo andar de cima. Pergunto, eles estão preparados para atender esses novos consumidores?

Se as “Bush-it” da economia americana não escorrerem abaixo do Rio Grande, fechando novamente o portão do paraíso, vamos enfrentar uma onda de consumo na qual precisaremos aprender a surfar.

Cerca de 30 anos depois do discurso do homem franzino no auditório da Folha de São Paulo, sua defesa da inclusão social torna-se realidade para 46% da população, algo na casa do 86 milhões de habitantes, em que pese ainda haver um grande contingente (cerca de 39% da população) abaixo da linha de consumo.

Em tempo: o orador no auditório da Folha de São Paulo era Dom Hélder Câmera, que terminou sua palestra com um retumbante “ou todos ou nenhum”.

3 comentários:

Fernando disse...

Excelente análise. Parabéns!

Anônimo disse...
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Anônimo disse...

Post acima retirado porque era SPAM com vírus ;)