segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Nós, os belgas

Edmar Bacha, economista, em 1974 criou o nome “Belíndia” como síntese da distribuição de renda no Brasil: uma minúscula ilha de prosperidade como a Bélgica, cercada por um oceano de pobres e miseráveis como a Índia.

Trinta e três anos depois, a realidade não é muito diferente. Embora a estabilidade econômica, obtida a partir do Plano Real, e mantida até hoje, tenha diminuído o contingente de miseráveis, eles ascenderam à pobreza, mas não ganharam visto para cruzar a fronteira com a Bélgica. Quanto à Índia, o referencial hoje seria injusto. Esse país, desde então, vem crescendo a taxas muito superiores ao nosso pífio desenvolvimento e talvez até devêssemos mesmo ansiar ser uma Brasíndia.

Lembrei-me da imagem alegórica de Bacha quando observava o comportamento de um grupo de colegas diante de um trabalho de comunicação dos ganhadores de uma grande promoção de vendas feita para os mercados do Norte e do Nordeste.

A peça de comunicação, um comercial para a TV, mostraria imagens das pessoas contempladas no sorteio. Devido ao pouco tempo de produção do comercial, a agência providenciou para que os ganhadores fossem fotografados por retratistas locais, orientados a seguir critérios mínimos de composição e enquadramento. Obviamente, a qualidade ficou bem comprometida, como já esperávamos. Para equalizar as fotos, deixando-as em condições razoáveis de ir para a edição, foi feito um rápido trabalho de photoshop.

As imagens, em sua totalidade, mostravam a população humilde característica da região. Apesar do tempo reduzidíssimo que tiveram para se arrumar para a foto, via-se que as pessoas, mulheres na maioria, vestiram sua melhor roupa e, cá e lá, percebia-se um esforço de maquiagem, um penteado mais elaborado, tudo com a mesma motivação que todos nós temos ao nos apresentar em uma ocasião especial; aparecer na televisão era sem dúvida uma ocasião especialíssima.

O resultado, vendo as fotos ampliadas no monitor do computador sendo trabalhadas, apresentava-se extremamente ingênuo e mesmo bizarro para quem, como nós, está acostumado a um meio onde só circula “gente bonita” (sic), padrão Bélgica. Não é preciso detalhar quão hilária foi para os presentes a visão desses habitantes do Brasil profundo. Afinal, os raros habitantes da Índia que circulam pela Bélgica são quase sempre invisíveis por se circunscreverem ao restrito circuito das áreas de serviço.

Vendo essa cena, pensei nas conseqüências no mercado que essa desigualdade acarreta. Mal ou bem, dependendo de que lado se está da fronteira da Belíndia, o controle da inflação, ajudado por programas como o Bolsa-Família, criou um mercado de consumo para a população de baixa renda. Estima-se um movimento de mais de 500 bilhões de reais ao ano, somando-se o consumo das classes C, D e E. Mesmo considerando que as classes C e D já existiam no mapa do marketing, o maior ganho ocorreu na classe E, para a qual não há sequer produtos customizados. Reina aí uma terra de ninguém, com uma economia subterrânea alimentada por não-marcas e ignorada pela indústria e seu marketing made in Belgium, voltado para os brasibelgas.

Há empresas começando a se preparar para fornecer para esse novo mercado, formulando produtos e instrumentos de comercialização que atendam às necessidades dessa gente pobre, mas consumidora.

Institutos de pesquisa e consultorias já estão levantando dados desse mercado e começam a traçar seu perfil. Fica a pergunta: estará o nosso setor preparado para olhar essa nova realidade sem as lentes deformadoras da visão classista? Conseguiremos falar com o outro lado da fronteira? O problema é que, na hora de formular a comunicação, os interlocutores entre o marketing e os novos consumidores indianos seremos nós, os belgas.


2 comentários:

Caldinas disse...

Pergunta: assim como virou moda agências contratarem pessoas focadas em descobrir tendências, será que não é o caso de haver cargo semelhante para "antropólogos da baixa renda"? Se bobear essas pessoas deveriam inclusive pertencer, no mínimo, à classe C.

Anônimo disse...

acho que esse caminho vai demorar pra ser trilhado. Todo mundo anda acompanhando a luta da Globo para aumentar sua audiência... sendo que eles deveriam entender que é o número de TVs ligadas nas emissoras abertas que diminuiu. Acho que o caminho só vai se abrir depois de muita gente ficar batendo a cabeça no espelho achando que é janela. Sorte dos pequenos que tenham o mapa na mão...