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Era óbvio que daquela inusitada aventura, nascesse um poema. E foi o que ocorreu, mas não naquela noite, que já havia sido suficientemente avassaladora.
Na manhã seguinte, sentei-me para escrever o poema que deveria expressar a aventura vivida na noite anterior. Tinha diante de mim um papel em branco. Sim, e agora, o que fazer? Por onde começar? Não sabia. Tudo o que havia era uma necessidade de, com palavras, expressar aquele momento quando um cheiro de jasmim atacou-me e aturdiu-me, como um assaltante vaporoso surgido da treva.
O poema, sabe, nasce do espanto, isto é, de um instante em que o enigma sempre não explicado e oculto da existência se põe à mostra. E então vemos que todas as explicações não explicam tudo, não explicam o que o cheiro de um jasmineiro nos revela, de repente, de noite, num jardim.
No poema o autor se confunde com o que diz, mistura-se com o fato, de tal modo que não se distingue o ocorrido do imaginado. O poeta, na verdade, não informa, inventa; não instrui o leitor, confunde-o deliberadamente, para deslumbrá-lo.
E por que inventa e confunde? Porque o perfume do jasmim - é intraduzível em palavras, e é o perfume que o poeta quer dar no poema. Quer dizer o indizível. E ali está ele, diante da página em branco, onde tudo pode acontecer mas, onde, por ora, nada acontece: apenas o silêncio anterior à fala.
Mas, se o perfume não se traduz em palavras, o que dizer com as palavras?O que há a dizer, de fato, ele não sabe, já que ainda não o disse: é só vontade, impulso indefinido. Assim, antes de ser escrito, o poema é apenas uma difusa intenção, não existe e pode nunca existir.
Como a palavra não diz o aroma, escrevê-lo é um jogo de probabilidades, de necessidade e acaso, que começa quando a primeira palavra é posta na página em branco. Ela reduz a probabilidade, que era infinita, ao dar início a um discurso possível e não sabido.
Essa primeira palavra, que poderia ser outra, deflagra a invenção do poema, a aventura imprevisível de escrever o impossível E assim o cheiro do jasmim, que não está nele, tornou possível inventá-lo, como a expressão da ausência do vivido, ou uma de suas possíveis presenças".
Por vezes, nessa nossa profissão, é assim que me sinto frente a um novo job. A única (e fatal!) diferença é que o resultado fica longe de um poema, mas traz em sua tecitura a mesma angústia.
(*) Texto editado a partir de crônica “Notícia de um assalto” de Ferreira Gullar para Folha de São Paulo.
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